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sexta-feira, 19 de março de 2010

O CAVALO DE TRÓIA

O homem atravessou a rua apressadamente, parecia atrasado par alguma coisa pelo modo como olhou para o relógio tirado do bolso, preso a uma corrente; talvez uma reunião, um encontro ou simplesmente porque resolvera consigo mesmo, um daqueles compromissos internos de não se atrasar, mesmo que não tivesse algo ou um horário específico para cumprir. Estancou na beirada do meio fio por um instinto contrário a sua voluntariedade, porque um veículo ao ultrapassar o farol vermelho quase o atropelou – pelo menos pode pressentir isso pelo vento que lhe tocou o rosto. O homem mexeu os lábios numa espécie indecifrável de resmungo por baixo do bigode espesso. Algumas pessoas que liam o jornal enquanto tomavam café na Coffee Express da esquina repararam de viés quando o veículo cantarolou um sol oitavado, virando a esquerda em alta velocidade. Advertido por esse pequeno incidente, o homem olhou para a pista nas duas direções antes de atravessar a rua. Diminuiu o ritmo dos passos e ajeitou seu chapéu de feltro com a mão direita. Na mão esquerda, mais propriamente debaixo do braço esquerdo o homem trazia um livro e um jornal dobrado no meio a partir do dorso. Desaparecera toda pressa como se uma mágica ou algo sobrenatural tivesse feito desaparecer a agitação do coração que até aquele momento vinha mantendo os passos acelerados se bem que o homem não acreditasse nem em uma nem na outra. Talvez a parada brusca sobre a primeira linha da faixa de pedestres tenha produzido o efeito. Parou na frente da primeira banca de jornal, tirou o chapéu que deixava uma marca redonda permanente nos cabelos de um negro profundo e lustroso e analisou rapidamente as primeiras páginas e continuou; aparentemente contado os passos sobre a calçada de piso quadriculado preto e branco como um extenso tabuleiro de xadrez cujas peças eram inúmeras e descaracterizadas figuras humanas. Caminhou uns trinta metros e parou novamente do lado oposto da rua em que um pequeno grupo de manifestantes protestava em frente ao prédio de mármore – ou seria outro material? Para efeitos da nossa narrativa trata-se de mármore, mas é bem possível se questionar essa afirmação. O mármore bege parecia bem mais claro devido ao reflexo do sol, pois o dia ia por volta das quatro e meia da tarde. De um lado os manifestantes produziam um zunido indecifrável e do outro lado – diga-se na mesma calçada – guardas em uniformes azul escuro; amarrotados combinados com bonés da mesma cor opaca. No meio dos manifestantes, duas faixas brancas com dizeres sem conexão, levantavam e se dobravam com o vento, desaparecendo no meio das pessoas. Passaram-se uns vinte minutos até que ema pequena multidão atravessou o viaduto e juntou-se aos demais, formando uma massa indistinta cujo zunido ainda indistinto triplicou. O tumulto sem forças em principio foi tomando maiores proporções até que desencadeou um conflito. Os guardas empurravam a multidão com cassetetes tentando impedir-lhes o avanço. O boné de um dos guardas voou sobre a multidão. Quando o homem percebeu que da direção oposta a que viera a multidão avançava uma tropa montada em cavalos fortes e resfolegantes, atravessou a rua rapidamente e juntou-se aos manifestantes que se agitavam em polvorosos frente aos empurrões dos guardas. Quando a tropa de choque foi incorporada à multidão recuou e cessaram as agressões. Até o barulho foi reduzido a um murmurar que observava o que se daria dali em diante. Sem saber quanto tempo se passara, o homem observava a estrutura gigantesca do prédio que se recolhia em sua cor natural na medida em que o céu se encolhia de sua claridade ao pôr do sol. Nada resolvido até o final da tarde, a multidão foi tomada pela fúria e o alvoroço disparou o ânimo do pequeno contingente policial. Um empurrão lançou um dos manifestantes sobre um dos guardas montados e os cavalos se agitaram num efeito dominó desenfreado. Um barulho agudo e sem ritmo começou a apitar desconfortavelmente dentro do ouvido do homem e sua cabeça começou a doer. Com gestos frenéticos o homem atravessou a multidão aos empurrões; a cabeça a frente do corpo e inexplicavelmente o chapéu não lhe caiu da cabeça. O homem soltou o livro e o jornal e abraçou-se ao pescoço do cavalo, que se inclinou para trás alçando o homem ainda agarrado ao seu pescoço, numa espécie de decolagem, retirando os pés do chão e sendo sacudido no ar em movimentos repetidos em sentido contrária ao que ia o rabo do animal. O policial montado tentava desgrudar o homem do cavalo dando-lhe violentas cacetadas. Era impressionante a força do homem que nem apresentava uma condição física avantajada. Depois de diversas pancadas por todo o corpo, o homem exausto finalmente caiu desacordado. Dois guardas saíram carregando o homem e o entregaram a dois funcionários da ambulância solicitada para o atendimento de possíveis feridos. Identificaram o homem por uma folha de papel no bolso de seu casaco: Frederico Nietzsche, professor convidado da universidade de Berlin. Daquele dia em diante o homem não disse mais uma palavra, apesar de ter vivido por mais dez anos. O filólogo estava louco.

quarta-feira, 17 de março de 2010

A teologia está morta. Resta-nos apenas teologisar.

segunda-feira, 15 de março de 2010

O HOMEM DE CHAPÉU

para meu avô Joaquim dos Santos

A vasta memória da serra
vislumbra o homem nú, cerrado
que veste apenas um chapéu
puído-botado. Viajante seguro
vindo das entranhas acinzentadas
pelas corredeiras secadas
e seu leito de pedras lisas
imunes a escaldante esfera afogueada.

O homem para com um
olhar semiabertura e suga
vorasmente a refrescante cabaça.
Retira de seu bornar um
taco moroso e doce do que
lhe restou dessas andanças.

Passa na testa sulcada
mãos grossas e vergadas
de batalhar a terra e colher
seu fruto chamuscado e tardio.

Este é homem que não lamenta
resignado com seu destino,
É uma rocha vermalha qual
cume da velha montanha
sob a qual séca-se-a sementeira.

Volta à terra, pó que o deu
e o tomou. Pó do pó nos
pés atados a chinéla, a correia
a chibata e ao arreio.

Homem que parte e não
lamenta ter vivido solitário
todas as vidas que viveu.